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O pagamento de recompensas a denunciantes e os impactos nos programas de integridade

No final de 2017, a U.S. Securities and Exchange Commission (“SEC”) divulgou o relatório anual do seu Whistleblower Program, um programa criado em 2011 que possibilita, entre outros aspectos, o pagamento de recompensas monetárias aos denunciantes que fornecerem informações sobre violações à legislação de securities americana (esse mecanismo foi criado pelo Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act[1]¸ assinado pelo presidente Barack Obama, em 21 de julho de 2010). Mais do que isso, o programa reconhece a importância da colaboração prestada por denunciantes nas ações da SEC para penalizar as empresas e indivíduos que cometeram violações à legislação de securities e buscar a reparação aos investidores lesados com tais violações.

Segundo o relatório, desde a criação do programa, um total de USD 975 milhões em sanções monetárias, oriundas de casos que contaram com a colaboração de denunciantes, foram aplicadas. Muito do sucesso do programa está baseado em três pilares centrais: possibilidade de recompensas em dinheiro aos denunciantes; proteção da identidade do denunciante; e proteção contra retaliação.

O pagamento de recompensas em dinheiro aos denunciantes é um dos principais pilares, podendo o denunciante receber cifras milionárias, eis que o valor da recompensa a ser paga é uma porcentagem (10% a 30%) das sanções aplicadas que, sabidamente, já chegaram a patamares próximos de bilhões de dólares (a cifra que lidera o ranking de sanções por violações ao FCPA hoje é USD 965 milhões, aplicada à empresa sueca Telia).

O relatório aponta que, desde 2012 (ano do primeiro pagamento de recompensa) até setembro de 2017 o programa já havia pago USD 160 milhões a 46 denunciantes, USD 50 milhões apenas em 2017. Uma breve pesquisa no site da SEC também aponta pagamentos de recompensas em outubro, novembro e dezembro de 2017. Em 2018, segundo site da SEC, foram realizados três pagamentos de recompensas que, somados, já ultrapassam a casa dos USD 4 milhões.

O incentivo financeiro à participação dos cidadãos na apuração de ilícitos é antigo no sistema americano e remonta ao False Claims Act, de 1863. Segundo o Desembargador Federal Márcio Antônio Rocha, em artigo publicado na Revista de Doutrina do TRF-4[2], o Congresso americano já reconhecia desde tal data que “i – os oficiais do governo não são suficientes para deter a variedade de fraudes contra o erário público; ii – apenas o cidadão com conhecimento próximo aos fatos pode coletar, preservar em momento próprio e trazer informações de difícil produção posterior; e, por fim, iii – o cidadão precisa ter incentivo financeiro e proteção por danos advindos da denúncia efetuada”.

No Brasil, foi publicada em 10 de janeiro de 2018 a Lei Federal nº. 13.608/2018 que, entre outras previsões, dispõe sobre o pagamento de recompensas por informações que auxiliem nas investigações policiais e o sigilo dos dados dos denunciantes (a lei chama de informante) que se identificarem, replicando aqui dois dos três pilares de sucesso do sistema americano.

Segundo o texto da lei brasileira, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios “poderão estabelecer formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos”. Ainda segundo o texto da lei, entre as recompensas que podem ser estabelecidas está a possibilidade de pagamento de valores em espécie, que teriam como origem o Fundo Nacional de Segurança Pública.

A iniciativa prevista na Lei nº. 13.608 ainda está longe de ter a maturidade e o funcionamento prático do programa de whistleblowers da SEC. Em termos práticos, a lei brasileira trouxe poucos detalhes de como funcionaria um eventual programa de pagamento de recompensas a denunciantes (apenas seis artigos em toda a lei , e apenas dois tratando do assunto).

O texto da lei trata da previsão para a criação de tais programas, que agora tem respaldo legislativo para que os entes federativos os criem, estipulando suas regras de funcionamento. Em razão disso, os desenvolvimentos que podem vir a acontecer a respeito nos demais entes da administração pública devem ser acompanhados de perto.

Trazendo a discussão para o impacto que esta iniciativa pode causar nos programas de integridade de empresas brasileiras, mais uma vez busco referência na situação americana. A SEC reconheceu em inúmeras ocasiões que valoriza mecanismos internos de denúncias e a possibilidade de as empresas tratarem suas denúncias internamente antes que elas sejam reportadas às autoridades.

Isso ficou claro em 2011 e novamente em 2015[3] quando a SEC divulgou guidelines indicando, entre outros pontos, que o denunciante pode receber a recompensa mesmo tendo reportado internamente primeiro e, de forma mais especial, que os denunciantes que reportam internamente também estariam cobertos pelas proteções antirretaliação previstas no Dodd-Frank Act. Esse último entendimento, contudo, foi atingido recentemente por uma decisão da Suprema Corte americana[4] que entendeu que a definição de whistleblower para efeitos das proteções antirretaliação do Dodd-Frank Act inclui apenas aqueles que fornecerem informações à SEC, não incluindo, portanto, os que realizam denuncias internamente.

A consequência mais imediata dessa decisão é a expectativa de que em razão de não estarem cobertos pelas políticas antirretaliação do Dodd-Frank Act (os “denunciantes internos” ainda estariam cobertos pelos dispositivos antirretaliação do Sarbanes-Oxley Act, que são menos protetivos e benéficos do que aqueles trazidos pelo Dodd-Frank Act) os denunciantes optariam por denunciar diretamente à SEC, minando a oportunidade de as empresas receberem denúncias por seus canais internos e tratarem as denúncias internamente antes do reporte às autoridades.

Sem entrar em discussões mais profundas que o tema certamente merece, no momento único que nos encontramos no Brasil com grandes operações anticorrupção e movimentos legislativos a respeito do tema (especialmente no que tange a mecanismos de denúncia e pagamento de recompensas), entendo que qualquer iniciativa legislativa no sentido da criação de mecanismos de pagamento de recompensas por denúncias deve considerar o funcionamento dos programas de integridade das empresas. Criar mecanismos contrários à onda de implementação de programas efetivos de integridade é, certamente, um efeito perverso que deve ser evitado a todo custo. A pergunta imediata aqui é: será que os órgãos reguladores e os entes federativos levarão em consideração o impacto que tais mecanismos terão no funcionamento e na eficácia dos canais de denúncia e programas de integridade das empresas?

Certamente, ainda há muito para acontecer nesse campo e ainda há muita incerteza sobre como esses mecanismos funcionarão ou se serão sequer criados. Não se pode ignorar, também, que existem outras iniciativas legislativas que visam regulamentar o assunto, como o Projeto de Lei nº. 1.701/2011[5], que tramita na Câmara dos Deputados e visa instituir o “Programa Federal de Recompensa e Combate à Corrupção por meio do qual o informante que contribui para a elucidação de crime contra a Administração e Patrimônio públicos, bem como para a recuperação de valores e bens públicos desviados, recebe recompensa pecuniária”.

O que se tira disso tudo, especialmente da experiência nos Estados Unidos, é que é necessária uma reflexão dos possíveis impactos que esses mecanismos que vem sendo criados (ou tendo suas criações autorizadas) terão nos programas de integridade das empresas brasileiras, e haverá importância do engajamento da sociedade civil no debate sobre a criação de normas que possam, ainda que com uma causa nobre, impactar de forma negativa o movimento de criação de programas de integridade nas entidades públicas e privadas no Brasil.

[1]https://www.gpo.gov/fdsys/pkg/PLAW-111publ203/pdf/PLAW-111publ203.pdf

[2] Artigo publicado na Revista de Doutrina do TRF4, edição nº 65, de 30.04.2015, disponível no link: http:// www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao065/Marcio_Rocha.html

[3]Finally, our interpretation best comports with our overall goals in implementing the whistleblower program. Specifically, by providing employment retaliation protections for individuals who report internally first to a supervisor, compliance official, or other person working for the company that has authority to investigate, discover, or terminate misconduct, our interpretive rule avoids a two-tiered structure of employment retaliation protection that might discourage some individuals from first reporting internally in appropriate circumstances and, thus, jeopardize the investor-protection and law-enforcement benefits that can result from internal reporting”. INTERPRETATION OF THE SEC’S WHISTLEBLOWER RULES UNDER SECTION 21F OF THE SECURITIES EXCHANGE ACT OF 1934, disponível em https://www.sec.gov/rules/interp/2015/34-75592.pdf.

[4] DIGITAL REALTY TRUST, INC. v. SOMERS. Disponível em https://www.supremecourt.gov/opinions/17pdf/16-1276_b0nd.pdf.

[5] http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=510440