Governança nas estatais: entre aporias e acacianismos
Por Rafael Hamze Issa
Fundador e Coordenador da Comissão de Governança Corporativa nas Empresas Estatais do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE)
O direito público brasileiro é marcado por diversas aporias, entre elas a relacionada ao alcance do princípio da legalidade administrativa. Afinal, o administrador público somente deve fazer aquilo que está previsto em lei ou é possível lhe impor obrigações não expressamente previstas? Para determinados deveres de ação do servidor público, é necessária a prescrição em lei formal ou podem estar previstas em atos infralegais? É possível impor obrigações ao Estado diretamente a partir da Constituição?
Tais questões, a despeito de rechearem o mundo acadêmico, no Brasil e no exterior, estão longe de ficar restritas a tal meio, pois possuem intenso reflexo na atividade cotidiana do Estado. Como, muitas vezes, na prática, a administração pública interpreta o alcance da legalidade em sentido negativo, ou seja, sem a obrigação de agir caso não haja expressa prescrição legal, é muito comum a repetição de frases – tomadas como verdadeiros mantras – do tipo “a administração pública somente pode fazer o que estiver expressamente previsto em lei”, ou mesmo algum servidor público afirmar não ser obrigado a tomar determinada atitude, por ausência de previsão expressa em lei.
Isso gera a necessidade de que o legislador, por vezes, tenha que agir de modo acaciano, prescrevendo, na lei, as maiores obviedades, com a finalidade de preencher as lacunas encontradas – ou seria melhor, cavadas? – por determinados intérpretes que não querem agir. Um exemplo disto pode ser verificado no caso do recente debate a respeito da governança corporativa nas estatais.
Tema razoavelmente adormecido até os recentes escândalos de corrupção revelados pela denominada “operação Lava Jato”, a preocupação com a utilização político-partidária de tais instrumentos de ação do Estado voltou à tona, com a mobilização da opinião pública, da comunidade jurídica e, como não poderia deixar de ser, do Legislativo.
Assim, diversos projetos de lei têm sido propostos, com a finalidade de impor regras de governança corporativa às empresas estatais, com vistas a conferir tecnicidade às nomeações de presidentes e diretores, bem como maior transparência à gestão de tais pessoas jurídicas, em benefícios dos acionistas minoritários e, principalmente, da população, a proprietária, ainda que indireta, das empresas estatais.
Um destes projetos legislativos, o PLS 502/2011, pretende reformar a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11), para estipular a obrigatoriedade de que as entidades da administração indireta federal tornem públicos os nomes completos e currículos dos dirigentes e assessores de nível superior, bem como os endereços, telefones e e-mails institucionais de tais profissionais.
Tal iniciativa legislativa, por mais louvável que seja – e, de fato, o é –, demonstra como o trato da coisa pública no Brasil precisa de uma séria reflexão, por parte, principalmente, do administrador público.
Em primeiro plano, chama a atenção o fato de tal projeto de lei, assim como os demais recentemente propostos a respeito da matéria, ser de iniciativa do Poder Legislativo e não do Poder Executivo, que possui, em última análise, a gestão e o controle das empresas estatais. Tal quadro parece demonstrar a ausência de uma preocupação do administrador público em prover meios que tornem a gestão das empresas estatais mais transparente e aberta aos anseios da sociedade.
Em segundo plano, tal projeto demonstra que, ante as deficiências da própria administração pública, ainda existe a necessidade de o legislador brasileiro atuar como o Conselheiro Acácio (do imortal Eça de Queirós), enunciando, na forma de lei, as maiores obviedades do sistema republicano, em pleno século XXI.
Ora, em um sistema republicano, o pressuposto básico do trato da coisa pública (res publica) é o de que ela seja administrada no interesse de toda a coletividade e não do grupo que está no poder, o que, no caso das empresas estatais, impõe o dever de atuação conforme o interesse público que motivou sua criação, com a tutela dos recursos públicos por elas geridos nas operações comerciais que realizam. Isto implica na necessidade de que o preenchimento dos cargos de direção, bem como dos respectivos assessores, seja feito de modo técnico, de acordo com critérios objetivos de competência dos gestores, da mesma forma como ocorre nas empresas privadas.
Assim, é decorrência lógica do próprio sistema republicano que se saiba: (i) quem está no comando das empresas estatais (tanto os diretores, quanto os assessores); (ii) quais as qualificações técnicas detidas por tais pessoas para ocuparem cargos de alta gestão e responsabilidade; e (iii) os meios pelos quais os proprietários, ainda que indiretos, das empresas (leia-se, o povo), podem entrar em contato com os gestores para obter informações a respeito do andamento dos trabalhos realizados.
Tais informações básicas a respeito da alta cúpula das empresas estatais deveriam, desde sempre, ser disponibilizadas de modo fácil aos cidadãos, mesmo sem a existência de qualquer comando legal que assim o determine, pois é decorrência do próprio sistema republicano, de tal forma que causa espécie a necessidade de lei determinando a publicidade dos dados mencionados.
Em suma, o que o PLS 502/2011 parece demonstrar é a necessidade de uma séria e serena reflexão a respeito do modo como a administração pública gerencia as empresas estatais. Caso o sistema republicano fosse levado a sério pela administração pública, seria necessária a acaciana proposição legislativa e, mais do que isto, de iniciativa do Senado Federal? A resposta, certamente, é negativa.
Espera-se que o ressurgimento do tema das empresas estatais na opinião pública, infelizmente motivado pelos escândalos de corrupção, seja um importante momento de reflexão a respeito da gestão de tais entidades, que leve à concretização dos ideais republicanos e ao melhor trato da coisa pública, impulsionados pelo próprio Poder Executivo, sem a necessidade de o Legislativo incorporar a figura do Conselheiro Acácio.