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O direito de errar dos juízes

* Por Kleber Luiz Zanchim

O dever de fundamentação das decisões judiciais tem sido bastante debatido no âmbito do Novo Código de Processo Civil (“CPC”), especialmente em função de seu artigo 489, §1º. A norma determina, entre outras providências, que os juízes devem (i) explicar a pertinência ao caso dos atos normativos que mencionarem, (ii) concretizar conceitos jurídicos associando-os especificamente às questões debatidas, (iii) evitar serem genéricos e (iv) quando recorrerem a precedentes, demonstrar sua aderência particular à lide. Eventual omissão nesses temas pode ser questionada via embargos de declaração. Tal recurso tem, porém, o retrospecto de gerar desgastes entre partes, advogados e magistrados. Para enfrentar esse contexto, vale debater o direito de errar dos juízes.

Alguém que, diariamente, depara-se com dezenas de problemas variados, precisa ler centenas de páginas e escrever outras tantas está, naturalmente, sujeito a erros. Em escritórios de advocacia bem estruturados, há mecanismos de controle e mitigação, mas seria pretensioso demais sustentar a infalibilidade do advogado. No Poder Judiciário, o juiz está em situação semelhante no tocante à complexidade (ou até em situação pior) sem contar, via de regra, com a mesma estrutura dos escritórios. Portanto, também seria pretensão em excesso pensar em um magistrado infalível.

Ocorre que, por razões institucionais e culturais, no Brasil há forte resistência a que o juiz possa admitir um erro. Parece ainda pairar nas Cortes o velho ditado latino “rex non potest peccare” (“o rei não erra”). No exercício do poder jurisdicional, o magistrado seria absoluto. Talvez por isso os despachos que respondem aos embargos de declaração saiam, na maioria, padronizados: “não há obscuridade, contradição ou omissão da decisão de fls…”. Tal circunstância não combina com a sociedade moderna em que o erro é não apenas tolerado, mas observado como oportunidade de aprimoramento.

Ajuste importante para a construção de uma relação processual mais saudável é a redução da tensão entre advogados e juízes. Nem um nem outro são “donos” da lide. Os direitos e as pretensões são das partes. Portanto, não faz sentido um ambiente rival em que os causídicos provoquem os magistrados e estes reajam como se houvesse uma batalha pessoal. Temperos de humildade de lado a lado, com reconhecimento de que ambos são apenas instrumentos do processo, podem tornar menos amargo o sabor dos litígios.

Outro passo relevante é óbvio: disseminação da visão de que errar é natural. O problema está em não corrigir o erro. O juiz não pode ser constrangido por mudar de opinião quando revê detalhes do caso. Ao contrário, deve ser aplaudido. Ao repensar, aprofunda a análise e confere contornos mais precisos aos direitos das partes. Essa conduta revela inteligência e grande compreensão do papel do julgador, que é decidir para o outro e não para si mesmo. Nesse ponto, os juízes carregam fardo mais pesado que os advogados. Estes são parciais, aqueles não. Formar convicção isenta costuma ser mais difícil do que defender determinado interesse. Logo, é imperioso haver abertura para que o magistrado possa modificar seus entendimentos.

As regras de fundamentação de decisões no Novo CPC, vistas de forma crua, podem ensejar descontentamentos, em especial por ampliarem o campo de admissão dos embargos de declaração. Contudo, associadas a um pacto de boa convivência entre juízes e advogados e a um contexto mais flexível para revisão, pelo julgador, das suas manifestações, podem contribuir para melhorias na administração da Justiça. É preciso mudanças subjetivas, na seara das vaidades, e objetivas, na maneira como o erro é tratado nas entranhas do Poder Judiciário. Na realidade, tem mais poder aquele que é livre para reconhecer seus erros do que quem se vê compelido a persistir neles.

* Doutor em Direito pela USP. Professor da FIA, Insper e FGVLaw. Coordenador da Comissão DesKafka do IBDEE. Advogado em São Paulo